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Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças (Fotos: Divulgação)
A reforma tributária foi, sem dúvida, a grande prioridade do governo federal nesses 19 meses iniciais de gestão. Ocupou grande destaque na mídia durante todo esse tempo porque o assunto é, de fato, importante para o país.
A questão, porém, é que matéria acabou tendo sua regulamentação aprovada pela Câmara dos Deputados sem que, lamentavelmente, tenha sido acompanhada de transparência e de algumas verdades, até então pouco divulgadas. Uma delas é que a reforma trata apenas dos tributos sobre consumo. Outra é que o Brasil terá, para a grande maioria dos setores econômicos, uma das duas maiores alíuotas do mundo: de 26% a 27% sobre o valor do bem ou do serviço.
É preciso atenção também para o fato de que grande parte da transição da tributação da origem para o destino acontecerá entre 2026 e 2033. Dada a complexidade da matéria, este prazo é realmente necessário. Por outro lado, é também o suficiente para muitas mudanças futuras em sua essência, pois esse intervalo coincidirá com os mandatos dos dois próximos presidentes da República, governadores, deputados e senadores. Desnecessário lembrar que no Brasil, país que edita montanha de leis, medidas provisórias, decretos, portarias e instituições normativas, tudo pode acontecer.
Em paralelo, o governo federal cuidou de si próprio e promoveu alterações legislativas sobre tributos federais que já em 2025 produzirão grandes aumentos nas arrecadações tributárias. O governo nega, mas o que se pode esperar, ao final, é o aumento da carga tributária.
Outro aspecto relevante da reforma, embora pouco esmiuçado, é a criação do novo tributo/imposto seletivo, também chamado de imposto sobre bens, artigos e materiais nocivos à saúde. Foi originalmente tratado como imposto regulatório – e não arrecadatório -, porém já toma outro rumo via aumento da abrangência da incidência sobre muitos bens. Ninguém admite, porém isso vai gerar aumento na arrecadação e, mais adiante, terá reflexos na carga tributária porque o governo vive às custas dos contribuintes.
Não há dúvidas também que setores econômicos muito importantes como serviços e construção civil poderão ser fortemente impactados com mais tributos. E isso não é nada bom porque são setores responsáveis pela geração de grande número de empregos.
O ponto mais positivo da reforma é a desoneração dos produtos da cesta básica - de primeira necessidade -, e de alguns itens de educação e saúde. Há, no entanto, muitos aspectos que necessitam de aprimoramento. Felizmente, ainda existe esperança de que sejam feitas correções importantes no Senado, a casa revisora, notadamente porque o relator designado, senador Eduardo Braga (AM) é um político de grande capacidade e experiência nos setores público e privado.
Durante a tramitação da reforma, alguns ministros insistiram na necessidade de tributar os cidadãos ricos e muito ricos, sob o argumento de que essa parcela da população não gosta de pagar tributos, imputando-lhes, ainda, a pecha de insensíveis e egoístas, às vezes até em tom ameaçador. Trata-se de uma meia verdade. Na realidade, o que nenhum contribuinte gosta é de não saber o destino da arrecadação nem ver melhorias nos serviços de educação, saúde, segurança pública e infraestrutura. Não se trata de mera sensação popular. O Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) apontou que, entre as 30 nações com a maior carga tributária do mundo, o Brasil é a que devolve os piores serviços à sua população.
A falta de recursos não pode ser utilizada para justificar essa situação. Em 2002, a carga tributária brasileira correspondia entre 23% e 24% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Em menos de dois anos cresceu 45% e hoje já corresponde a 32%-33% do PIB.
É uma pena que a reforma tributária, a despeito de sua importância, tenha eclipsado a discussão de outros problemas graves que afligem o país. Esse espaço foi tomado quase que unicamente pela investigação sobre o desvio das jóias de valores expressivos presenteadas ao ex-presidente pelos governos da Arábia Saudita e pelos episódios de 8 de janeiro de 2023, em Brasília. É muito pouco para um país com tantas questões graves e ainda mergulhado em desunião nos campos político e econômico.
Necessário que a grande mídia também dê espaço para denúncias envolvendo outras práticas suspeitas, como o desvio de verbas milionárias por um ministro de Estado, sem nenhum interesse nacional, apenas familiar. Pior, ainda, é o ministro ser mantido no cargo e seus atos serem protegidos por sigilo de 100 anos, decretado durante a investigação. E para o caso de outro ministro, cujo patrimônio saltou de R$ 3 milhões para R$ 78 milhões após seu ingresso na vida pública. Pode ser apenas coincidência, mas empresários do setor de energia estiveram mais de 10 vezes no gabinete desse ministro antes de arrematarem uma concessionária de energia com passivo bilionário. Se não bastasse, o mesmo ministro obteve de uma agência do governo licença para familiares e ex-sócios explorarem mina de diamante em Minas Gerais.
Não chega a ser novidade, é verdade, diante do histórico de como o país trata a questão da corrupção. Basta lembrar que acordos de leniência bilionários, firmados por grandes empresas que confessaram prática de corrupção descobertas pela Operação Lava-Jato, foram anulados ou suspensos. No entanto, isso pode mudar com o resgate ético do qual tanto necessita a nação.
Com a pauta da reforma tributária já sendo superada, caberia ao governo voltar sua atenção, por exemplo, para o Custo Brasil. Um exemplo é gravidade social e econômica da violência urbana. Em 2023, o país registrou 46.000 homicídios, uma das maiores taxas do mundo. Foi registrado, ainda, um estupro a cada seis minutos – índice de 44,1 ocorrência para cada grupo de 100.000 mulheres, vitimando principalmente crianças de até 13 anos.
Segundo a Fecomércio, a violência urbana tem custo direto de R$ 60 bilhões/ano somente no estado de São Paulo. Somando-se os custos indiretos, essa soma pode chegar a R$ 200 bilhões/ano, o equivalente a cerca de cerca de 6% do PIB paulista ou, no mínimo, a 2% do PIB nacional. Estima-se que, em todo o território brasileiro, os prejuízos causados pela falta de segurança atinjam 5% do PIB, algo em torno de R$ 545 bilhões/ano.
Desse total, cerca de R$ 200 bilhões são gastos pelos brasileiros em câmeras de segurança, alarmes, apólices de seguro contra roubos, carros blindados, e escolta armada para transporte de produtos e insumos. É a falência das políticas públicas de segurança urbana, com prejuízos para os cidadãos e para o sistema público de saúde, destino das vítimas feridas nas ações criminosas, responsáveis por ceifar 45.000 vidas por ano.
Este tema, portanto, deveria estar entre as prioridades do governo, assim como a educação. O Brasil continua a amargar a 62ª posição no ranking de competitividade entre estudantes de 67 países analisados nesse levantamento realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Um bom caminho para mudar essa situação seria investir em escolas com ensino integral. De acordo com pesquisa revelada no jornal Folha de S. Paulo (06/05/2024), estudantes de escolas públicas de São Paulo com ensino em tempo integral tiveram ganho de 35% no aprendizado de matemática e de 26% em língua portuguesa. Há também o exemplo da Coreia do Sul, país que registrou aumento de produtividade de US$ 17.600/per capita/ ano por cada ano adicional de escolaridade.
É de se lamentar que a verdadeira prioridade do governo brasileiro seja o aumento da arrecadação tributária, em detrimento de tantas outras ações mais prementes para melhorar a vida da população. O cidadão também não vê o governo dar o exemplo cortando despesas primárias, reduzindo privilégios e combatendo efetivamente a corrupção.
Há graves distorções reclamando correção imediata. Uma delas reflete diretamente na qualidade de vida da população. O Brasil, embora seja a 9ª economia do mundo, com PIB de US$ 2.173 bilhões, ocupa apenas a 62ª posição no PIB per capita/ano, que é de US$ 10.541 por ano, bem menor que o do Uruguai (US$ 15.471/ano), do Chile (US$ 15.158/ano), atrás também da China (US$ 12.621/ano) e muito longe, por exemplo, da Coréia do Sul (US$ 35.569/ano) e de Israel (US$ 35.569/ano).
Internamente, as desigualdades regionais também são gritantes. A renda média mensal dos moradores da Região Norte é de apenas R$ 1.158,00 e, na Região Nordeste, é de R$ 1.168,00. Respectivamente, 36% e 31% menores que renda média nacional mensal.
Falta transparência e sobram narrativas. A população não tem a verdade e merece que seja eleita uma pauta prioritária voltada às principais necessidade do povo e do país, definida em plano de governo escrito que permita a qualquer cidade acompanhar o cumprimento das metas.
É sempre bom lembrar a lição do filósofo e escritor norte-americano Henry David Thoreau (1817/1862): “Jamais haverá um estado livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate de maneira adequada”.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.
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