Jurista, que assume amanhã a presidência do TSE, afirma que cobrará que partidos sigam seus programas e que hipótese de terceiro mandato é 'golpear a república'
O MINISTRO do STF (Supremo Tribunal Federal) Carlos Ayres Britto, 65, que assume amanhã a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), diz que a idéia do terceiro mandato "golpeia a república". Ele critica os partidos que, diz, são "a tristíssima expressão de um sepulcro caiado: por fora está pintadinho, mas por dentro é uma putrefação só". Britto é o primeiro indicado por Lula a virar presidente de tribunal superior.
Ele afirmou que planeja cobrar fidelidade dos partidos aos seus programas e critica o quociente eleitoral, regra que possibilita a eleição de candidatos com pouquíssimos votos, desde que a sua coligação tenha se saído bem nas urnas. O ministro se lembrou dos tempos em que foi filiado ao PT. "O partido passou e talvez ainda passe por uma grave crise de identidade."
FOLHA - Quais são os principais temas que o sr. espera resolver até as eleições municipais deste ano?
CARLOS AYRES BRITTO - Precisaremos, antes das eleições, aperfeiçoar o sistema de fidelidade partidária, que nós implantamos no ano passado, e retomar uma discussão sobre o quociente eleitoral em eleições proporcionais. Mas não só isso: certamente voltará à tona o tema da vida pregressa de um candidato sob suspeita e a discussão sobre se a legislação que hoje dispõe sobre jornais, rádios e televisão pode ser aplicada à mídia on-line. Por último, é necessário que o TSE debata sobre programas como o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] em ano eleitoral.
FOLHA - O que seria aperfeiçoar o sistema de fidelidade partidária?
BRITTO - Estamos cobrando dos candidatos fidelidade aos partidos e ao esquadro ideológico que sai de cada eleição. Mas o partido tem fidelidade a ele mesmo? Pode ter um programa belíssimo e uma prática feiíssima? Se estamos cobrando dos candidatos eleitos postura compatível com uma idéia de qualificação política ou de autenticidade do regime democrático representativo, então como admitir partidos com as oligarquias partidárias? Que sepulcro caiado é esse, que por fora está pintadinho, mas por dentro é uma putrefação só? Até que ponto podemos conviver com tristíssimas expressões de sepulcros caiados?
FOLHA - O sr. foi filiado ao PT por muitos anos. Como é comparar o PT atual com aquele de 20 anos atrás?
BRITTO - Quando fui indicado para ministro do Supremo, virei minha página partidária. Não por me arrepender ou por refugar, não existe isso. Mas continuo achando que o PT, na retomada do processo democrático brasileiro, cumpriu um papel fundamental. Não posso desconhecer, porém, que passou e talvez ainda passe por uma grave crise de identidade.
FOLHA - Sobre o quociente eleitoral, existe um debate acontecendo no TSE que o sr. pediu vista...
BRITTO - Eu pedi vista do processo porque 16, 17 anos atrás, eu escrevi um artigo que foi publicado em uma revista do TSE já levantando esse tipo de questionamento. Até que ponto a lei pode, a pretexto de implantar um sistema proporcional de votação e apuração, desconsiderar o voto do eleitor e desviar esse voto para quem não o recebeu? A lei, ao que parece, está entrando em contradição ao permitir que partidos e políticos se apropriem de votos que não lhes foram dados.
FOLHA - Não seria esse o caso dos suplentes de senadores?
BRITTO - Pode-se discutir também se a legislação sobre os dois senadores suplentes é compatível com a pureza do regime democrático representativo. No mínimo, a própria Justiça Eleitoral terá de projetar na tela do computador, da urna eletrônica, a imagem dos dois suplentes e os nomes. O mesmo acontecendo para os vices das chefias executivas.
FOLHA - São mudanças que já podem acontecer nessas eleições?
BRITTO - Já. Porque, no fundo, você vota em três pessoas. Então o eleitor precisa saber: esse senador tem telhado de vidro.
FOLHA - Pode-se dizer que um possível terceiro mandato fere um dos pilares da democracia?
BRITTO - A república é uma forma de governo contraposta da monarquia. Enquanto a monarquia é hereditária, a república é eletiva. Logo, na república, a renovação dos quadros dirigentes é uma necessidade. Ora bem, se você possibilita a renovação de mandatos, você golpeia a república nesse seu elemento da renovação dos quadros dirigentes. Quanto mais você prorroga um mandato, mais se aproxima da monarquia e se distancia da república. O pior de tudo da idéia de outro mandato é que cesteiro que faz um cesto faz um cento. Você permite uma reeleição, já fragilizou a pureza do regime republicano. Depois você tolera uma segunda reeleição. E porque não uma terceira? Aí você perde a noção de limite e teremos uma república no papel e uma monarquia de fato.
FOLHA - E a utilização eleitoral de programas sociais?
BRITTO - É algo que nos obriga a andar sobre um fio de navalha, pois é muito tênue a fronteira do legal e do ilegal. De uma parte, não se pode impedir o governo de governar. De outra, porém, há essa possibilidade da quebra do princípio da paridade de armas eleitorais. Não se pode aprioristicamente dizer que esses programas de governo são eleitoreiros, como não se pode também aprioristicamente cair na fórmula do liberou geral. A Justiça Eleitoral tem que analisar caso a caso.
FOLHA - Ao tratarmos do princípio da paridade de armas, entramos no debate de financiamento de campanha. Qual sua visão sobre o tema?
BRITTO - Victor Hugo [escritor francês] disse o seguinte: nada é tão irresistível quanto a força de uma idéia cujo tempo chegou. O financiamento público de campanha é uma idéia cujo tempo chegou. Chega de caixa dois. Porque caixa dois é caixa-preta. É espaço do subterfúgio.
FOLHA - E sobre voto obrigatório?
BRITTO - Sou a favor do voto facultativo. Porque ele não faz do ato de votar um peso. Faz com a noção de dever natural, cívico.
FOLHA - E se os insatisfeitos deixarem de votar e prevalecer o voto de quem ganha favores de candidatos?
BRITTO - Não é mais o eleitor vítima. É cúmplice. O processo eleitoral é como um concurso. Os candidatos são os políticos e os examinadores, os eleitores. Se passam nesse concurso maus candidatos, é porque os examinadores permitiram.
FOLHA - O sr. gosta de usar metáforas, citar escritores. Está para lançar seu sétimo livro de poesia. Como é mesclar vida de poeta e jurista?
BRITTO - Sou poeta antes mesmo de ser jurista. Quando assumi no Supremo decidi não deixar esse meu lado jurista passar por cima do poeta. A linguagem jurídica tradicional é muito fechada. Além de posuda. Quando permeada de literatura, ganha em clareza, beleza e, por conseguinte, fica atraente.
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